segunda-feira, 5 de março de 2012

Gênero terror: o medo como estética de entretenimento


O cinema, desde que surgiu e foi gradualmente agregando novas estéticas artísticas, inevitavelmente abriu espaço para as mais diversas emoções: desde o alívio quando o casal de um romance finalmente supera as adversidades, como em An Affair to Remember (1957) e termina junto até a tensão de observar inerte ao desespero de pessoas presas num local que decerto as levará à morte, como em The Towering Inferno (1974). Mas muito antes disso – de qualquer um dos filmes citados –, datado do começo do século XX, inúmeras outras sensações já haviam sido expostas nas películas e, ainda mais anteriormente, a literatura já as havia dado ao seu público, permitindo que eles rissem de uma situação histriônica, chorassem a morte de uma personagem, se encantassem com a atmosfera de alegria presente numa narrativa e, também, fez muitos leitores sentirem medo.

Há, primeiramente, que se ignorar o pressuposto de que o medo é um sentimento infantil e que a estética do horror seja, dado a sua natureza assombrosa, voltada para o público adulto. Precisamos nos lembrar de que o medo evoca a compreensão de que algo ou alguém pode nos atingir e nos afetar negativamente, mostrando assim que, mesmo que mais sobressalente em crianças, a capacidade de abstraí-lo e correlacioná-lo a algo concreto requer bastante maturidade. Depois, é necessário compreender que o horror enquanto estética advém da verossimilhança, ou seja, da comparação com elementos reais, de modo que haja, na vida real, algo que se assemelhe àquilo que é visto em filmes e livros, independentemente do público para o qual sejam voltados. Como se vê nos contos de fadas, a benevolência e a maldade, o bom e o mau, o certo e o errado – todos advindos de padrões morais e éticos –, representam a máxima dicotomia da vida: ou dá certo ou não dá. Em seu livro Psicologia dos contos de fadas (1980), BETTELHEIM afirma que “nos contos de fadas, o mal é tão onipresente quanto a virtude” e acrescenta que “bem e mal são onipresentes na vida e as propensões para ambos estão presente em todo homem” (p. 15).


Assim, já eliminamos o pensamento de que sentir medo é uma característica infantil e acrescentamos a afirmação com base ontológica que o ser humano vive a dualidade de ser bom ou ser mal. E, aproveitando o ensejo, talvez Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1931) seja um bom exemplo de ilustração para representar essa problemática proposta, ainda que represente essa bifurcação entre o correto e o errôneo de modo bastante alegórico, qual o faz The Picture of Dorian Gray (1945): ambas as obras discorrem acerca de homens que vivem dupla vida, uma enquanto figuras sociais representativas e modelares, outra enquanto criaturas sociopáticas e indesejáveis. Aproveitando os exemplos, cabe agora dizer que a estética do horror não faz uso de um elemento puro e uno, mas decerto busca provocar o terror em quem lê um conteúdo literário ou assiste a uma produção cinematográfica – assim, como todos os gêneros narrativos, pode-se dizer que o gênero terror é bastante híbrido, principalmente por causa do intercruzamento que tem havido entre os diversos gêneros cinematográficos. Ficção científica e o terror podem se unir numa trama como Alien (1979), na qual astronautas se vêem cercados numa nave por uma criatura alienígena que potencialmente os devorará; The Exorcist (1973) une o terror de uma possessão demoníaca ao drama de uma família incrédula que se vê destruída pelo que não consegue compreender. Num trabalho oralmente apresentado na Universidade Federal Fluminense no ano de 2001, o professor doutor Eurico de Lima Figueiredo afirmou que as classificações genéricas são apenas um método de enxugar do modo mais eficiente a atmosfera do filme e que a classificação “retém algo de artificial perante a complexidade da realidade que pretendem entender e nomear” – isto é: o horror pode estar presente em películas de quaisquer gêneros.

Ainda que esse texto não se proponha analisar diacronicamente o gênero, torna-se inevitável não apontar algumas estéticas fundamentais à consolidação dele nem se pode ignorar títulos que percorreram a vida do cinema do horror e que mostraram  - e ainda mostram - que há público para assistir a essa estética fílmica. As doutrinas cinematográficas que embasam o gênero são praticamente tão velhas quanto ele próprio, uma vez que o terror se apropriou, além de suas próprias bases, da pintura e da literatura – a primeira visual, a segunda mentalmente imagética – para compor o filme, que é notadamente muito mais visual que qualquer uma das artes citadas. Que fique a ressalva, a tempo, de que a afirmação apenas se refere ao fato de que os filmes apresentam um número maior de imagens e que eles inevitavelmente “impõem” uma definição modelar ao espectador: aquele que lê Frankenstein (1818), de Mary Shelley, possui mais liberdade para imaginar o personagem à sua própria maneira do que aquele que assiste à obra cinematográfica, uma vez que o filme já lhe apresenta a figura pronta, cabendo ao espectador não imaginá-lo, mas acompanhar o desenvolver da trama.

Como já citado, o cinema de terror se apropriou de vanguardas para se fortalecer. Apenas a realidade, no seu máximo verossímil, não era suficiente para impor ao espectador a estranheza causada por um filme como Nosferatu, eine Symphonie des Grauens (1922), obra alemã que fez uso do expressionismo a fim de fazer “a arte ultrapassar os limites da realidade, tornando-se expressão pura da subjetividade psicológica e emocional” (MONTEIRO, 2007, s/p). Ainda discorrendo mais sobre a relação do real e do fantasioso, o autor afirma que a “deformação das figuras dos expressionistas mostra claramente os impulsos libertários do movimento que submeteu o real às leis da imaginação, com pinturas de atmosfera apocalíptica e anarquista” (idem). E transpondo o significado de “anarquismo” para a natureza das artes, fica evidente que o expressionismo buscava desestruturar, através do horror, o arquétipo de cinema que havia até então: o exaustivo retrato da vida real.


Qual é o propósito, afinal, do gênero e como ele atinge o público? Decerto angustiar a platéia. NOGUEIRA (2010) diz que, quanto ao gênero, “o seu apelo e o seu fascínio para o espectador, provêm, ironicamente, da incomodidade e do desconforto que provoca neste”. É importante que saibamos que não apenas o incômodo, tampouco o medo em si, mas inúmeras sensações e emoções são correlatas a essa vertente cinematográfica: o asco em Cannibal Holocaust (1980), a angústia em Rosemary’s Baby (1969), a claustrofobia em The Shining (1980), a desolação em Night of the Living Dead (1968) e, trazendo mais próximo de nossa época, a inércia em Dark Water (2005) e a incompreensão em Paranormal Activity (2009). Todos esses filmes inevitavelmente se encarregam de perturbar o espectador, colocando-o lado a lado com a possibilidade de que aquilo na tela possa, afinal, se aproximar dele de algum modo e assim o colocar na mesma situação que a do personagem a que ele assiste.
E todas essas sensações dependem de uma via bilateral: tanto o filme deve se mostrar capaz de levar sua mensagem ao espectador quanto o espectador deve estar aberto ao que virá. Uma produção composta por aspectos artísticos fortes é capaz de revirar o estômago do público: um bom trabalho de maquiagem que transforma um rosto angelical em algo diabólico; um bom trabalho de som que consiga condicionar o espectador a seguir a cadência de tensão do filme; direção perspicaz, capaz de truques para intensificar a tensão, como a opção por filmar de ângulos diversos, diminuindo ou aumentando o personagem em relação à visão do espectador. E cabe à platéia selecionar quais filmes quer ver: de nada adiante ir ao cinema assistir a uma película de terror sobre zumbis se o que lhe dá verdadeiramente medo são os fantasmas ou os extraterrestres.

Há quem torça o nariz para os filmes de terror: “não são tão bons quanto os dramas”, “só tem sangue nisso”, dentre inúmeras outras afirmações descabidas, principalmente porque é bobagem, no caso da primeira assertiva, ignorar o drama psicológico que circunvizinha os personagens, e, no caso da segunda, esperar que o filme em questão desrespeite a sua própria proposta (por exemplo, é injustificável fazer tal reclamação de uma obra como Nightmare on Elm Street, de 1984, cujo enfoque é justamente no seu caráter sanguinário). E, aproveitando o último filme citado, é improvável não admirar a produção dos filmes de horror, principalmente porque eles, quais os contos de fada, colocam no nosso imaginário inúmeras figuras que nos perseguirão por toda a vida – sempre nos lembraremos de Jason (Friday the 13th, 1980), o assassino mascarado do Lago Cristal e do seu persistente ciúme pelo acampamento; também traremos conosco o terror intrínseco à personagem de Anthony Hopkins em The Silence of the Lambs (1991) e, ao ver sua imagem, seremos sempre como Clarice Starling, a olhá-lo com olhos desafiadores e, ao mesmo tempo, apavorados; tampouco creio que haja quem possa se esquecer dos fantasmas que perseguiram Nicole Kidman em The Others (2001) e, muito antes dela, dos espíritos trevosos que perturbaram a vida de Deborah Kerr, em The Innocents (1963). E o mal, em sua forma mais dilaceradora, não se verifica apenas em assassinos seriais e casas mal assombradas – ele também se apossa de crianças – mesmo as mais dóceis – e as transforma no elixir do terror que vimos em Rhoda Pennmark, Damien, Henry Evans e Samara, respectivamente dos filmes The Bad Seed (1956), The Omen (1976), The Good Son (1993) e The Ring (2002).

Como todos os outros gêneros, o terror não se limita aos adultos tampouco faz com que os humanos sejam os protagonistas. Com caráter bastante democrático, o elemento a causar o terror pode ser uma pessoa (Sleepaway Camp, 1983), um sonho (The Cell, 2000), um fenômeno da natureza (The Fog, 1980), um veículo de transporte (Christine, 1983), um lugar (The Pet Semetary, 1989) ou, pasmem, até mesmo um objeto (The Refrigerator, 1991). E, como todo gênero, tem suas exemplares que merecem ser conferidos (REC, 2007) e aqueles dos quais devemos passar longe (5ive Girls, 2006). E, sobretudo, não podemos ignorar o fato de que, como qualquer outro gênero, o terror é fundamental para a análise não apenas do cinema enquanto objeto artístico e, conseqüentemente, sociológico (já que traz consigo o reflexo de uma sociedade), mas talvez do próprio homem, que viu na produção cinematográfica um instrumento para registrar aquilo que é presente em nossas vidas: o medo.



Referências bibliográficas:
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução de Arlene aetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

FIGUEIREDO, Eurico de Lima. Cinema, terror e ideologia. In: < http://www.achegas.net/numero/um/eurico_f.htm>, acesso em 02 de março de 2012.

MONTEIRO, Pedro. O Expressionismo recriando conceitos e valores. In: < http://www.overmundo.com.br/overblog/o-expressionismo-recriando-conceitos-e-valores>, acesso em 02 de março de 2012.

MOURA, Edgar. 50 anos luz, câmera e ação. São Paulo: SENAC São Paulo, 2001.

NOGUEIRA, Luiz. Manuais de cinema II: os géneros cinematográficos. – s.n.t.

XAVIER, Ismael (org.). A experiência do cinema. Coleção arte e cultura, v. nº 5. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.

Um comentário:

thicarvalho disse...

Belíssimo texto. Fala bem sobre esse tão adorado gênero,que ultimamente não vem sendo honrado como deveria. Aliás, como o cinema foi criado justamente para permitir novas sensações ao espectador, nada mais importante do que o medo provocado pelos filmes de terror. Grande ABS.

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